Luís de Camões PARTE FINAL
Sexta-feira, 04.10.13
Luís de Camões PARTE FINAL O desengano Outro tema significativo que ocorre na sua poesia é o da transitoriedade das coisas do mundo, também trabalhada através dos contrastes dialéticos e outros jogos de linguagem. Faz Camões na sua obra uma elaborada meditação sobre a condição humana, a partir da sua trabalhosa experiência pessoal, que vê refletida e multiplicada no mundo. Daí que desenvolveu um senso de fatalismo: o mundo é efémero, constata o poeta, o homem é fraco e a sua vontade é precária e impotente contra as forças superiores do destino. É o mar que traga de inopino a donzela amada, é a guerra e a doença que destroem as vidas ainda em botão, é a distância que separa os amantes, é o tempo que corrói as esperanças, é a experiência que contradiz o sonho belo, tudo passa e o imprevisto surpreende o homem a cada passo, anulando qualquer possibilidade de se manter a perspetiva renascentista de harmonia entre o homem e o cosmos - disso vem o desengano, a desilusão, um conceito comum neste domínio de sua obra, que o faz experimentar a amargura da morte ainda em vida. A sua mente vê-se perdida num mar de pensamentos desencontrados, chega a dizer que a vida não tem razão de ser e que tentar descobrir o seu sentido é tão inútil como perigoso, pois o pensar sobre as dificuldades da vida somente aprofunda a dor de viver e não tem o poder de salvá-lo da realidade miserável do homem. Composta após o naufrágio no Oriente, a célebre redondilha Sobre os rios que vão (também conhecida como Sôbolos rios que vão), ilustra este aspeto da obra camoniana, da qual seguem três estrofes: |
1. "Sobre os rios que vão por Babilonia m'achei, Onde sentado chorei as lembranças de Sião, e quanto nela passei. Ali o rio corrente de meus olhos foi manado, e, tudo bem comparado, Babilónia ao mal presente, Sião ao tempo passado. . . . 2. "Ali lembranças contentes n'alma se representaram, e minhas cousas ausentes, se fizeram tão presentes como se nunca passaram. Ali, depois de acordado, c'o rosto banhado em água, deste sonho imaginado, vi que todo o bem passado não é gosto, mas é mágoa. . . . 3. "E vi que todos os danos se causavam das mudanças, e as mudanças dos anos, onde vi quantos enganos faz o tempo às esperanças. Ali vi o maior bem, quão pouco espaço que dura, o mal quão depressa vem, e quão triste estado tem quem se fia da ventura". |
A religião Quanto à religião, Os Lusíadas é uma defesa intransigente do Catolicismo e um pesado ataque àqueles que não o abraçam, criticando os protestantes e principalmente os "infiéis" muçulmanos, descritos quase invariavelmente como ardilosos, enganadores e desprezíveis. Critica até países católicos como a França, por não defender com vigor a religião contra o avanço protestante, e a própria Itália, sede do papado, por considerá-la caída em vícios. Mesmo a constante presença dos deuses pagãos no poema não contradiz a sua ortodoxia, pois na época isso era considerado uma natural licença poética e assim foi entendida pelos censores eclesiásticos. O tema da religião aparece também na sua produção lírica, como ilustra o seguinte soneto: Desce do Céu imenso, Deus benino, Para encarnar na Virgem soberana. "Porque desce divino em cousa humana?" "Para subir o humano a ser Divino". "Pois como vem tão pobre e tão minino, Rendendo-se ao poder da mão tirana?" "Porque vem receber morte inumana Para pagar de Adão o desatino". "Pois como? Adão e Eva o fruto comem Que por seu próprio Deus lhe foi vedado?" "Si, por que o próprio ser de deuses tomem". "E por essa razão foi humanado?" "Si. Porque foi com causa decretado, Se o homem quis ser deus, que Deus seja homem". — Rimas Aflito por insucessos amorosos, pela miséria da condição humana, chegou a amaldiçoar o dia em que nasceu em um poema carregado de pessimismo e desalento. Diante disso, para Camões a fé foi a resposta final para os "desconcertos do mundo": o derradeiro consolo está em Deus. Mesmo que a injustiça prevaleça em vida, no Céu o homem terá recompensa. Pôde ainda expressar sua resignação e esperança dizendo que o que parece "injusto aos homens e profundo, para Deus é justo e evidente", e os que aceitam o sofrimento com paciência não incorrerão em outros castigos. |
Camões e a linguagem Em que pese Camões ser o grande modelo da língua portuguesa moderna, e da sua obra já ter sido extensamente estudada sob os pontos de vista estético, histórico, cultural e simbólico, de acordo com Verdelho relativamente pouco estudo tem sido feito sobre os seus aspetos filológicos, nos domínios da sintaxe, semântica, morfologia, fonética e ortografia, ainda mais que o poeta teve um papel importante para fixar e dar autoridade a uma tradição literária em português, quando na sua época o latim era uma língua altamente prestigiada para a criação literária e para a transmissão de conhecimento e cultura, e o espanhol, que sempre exerceu uma pressão, logo após a morte do poeta se tornou uma ameaça séria à sobrevivência do idioma lusitano, por conta da união ibérica. Como pensa Hernâni Cidade, isso indica que Camões estava ciente da sua conjuntura linguística e fez uma opção deliberada pelo português, e na sua produção transparece um forte interesse linguístico, sentindo-se "uma permanente reflexão sobre a língua, uma aguda sensibilidade aos nomes das coisas, às palavras e à maneira de as usar... Em Os Lusíadas, por exemplo, várias vezes se dá notícia da estranheza perante o encontro de novas línguas".Na escassa correspondência autógrafa que sobreviveu esse interesse está declarado explicitamente. Na Carta III ele narrou a um amigo o hábito das alcoviteiras de Lisboa, que traziam "sempre aparadas as palavras para falar com quem se preze disso, cousa que eu tenho por grande trabalho". Notou o desprezo de que o falar rústico dos camponeses era objeto e deu uma pitoresca descrição do poliglotismo que encontrou vigorando em um prostíbulo: "Deste dilúvio houveram algumas damas medo e edificaram uma torre de Babilónia, onde se acolheram; e vos certifico que são já as línguas tantas que cedo cairá, porque ali vereis mouros, judeus, castelhanos, leoneses, frades, clérigos, solteiros, moços e velhos (sic)". Na Carta II o poeta descreveu a linguagem das moças da Índia, que de tão rude lhe esfriava o ânimo romântico: "Respondem-vos uma linguagem meada de ervilhaca, que trava na garganta do entendimento, a qual vos lança água na fervura da mor quentura do mundo". |
O seu linguajar literário foi sempre reconhecido como erudito; Faria e Sousa já dissera que Camões não escrevera para ignorantes. A influência do seu modelo repercutiu profundamente sobre a evolução da língua portuguesa pelos séculos seguintes, e durante muito tempo foi um padrão ensinado nas escolas e academias, mas Verdelho considera-o mais próximo da fala de comunicação quotidiana moderna em Portugal do que o português usado, por exemplo, pelos escritores lusos do Barroco ou mesmo por alguns autores contemporâneos. Para o pesquisador a linguagem de Camões mantém uma notável proximidade entre os códigos linguísticos e os códigos poéticos, dando-lhe uma transparência e legibilidade únicas, sem que isso implique um ofuscamento das suas fontes clássicas, italianas e espanholas, ou uma redução na sua complexidade e refinamento, prestando-se a elaboradas análises. Cabe notar que se deve a Camões a introdução de uma quantidade de latinismos na linguagem corrente, tais como aéreo, áureo, celeuma, diligente, diáfano, excelente, aquático, fabuloso, pálido, radiante, recíproco, hemisfério e muitos outros, prática que ampliou significativamente o léxico do seu tempo. Baião o chamou de um revolucionário em relação à língua portuguesa culta de sua geração, e Paiva analisou algumas das inovações linguísticas trazidas por Camões dizendo: Os Lusíadas constituem um testemunho de primeira importância sobre uma mudança (linguística) em curso na época. Camões não se revela apenas como um homem do seu tempo cuja linguagem reflecte a variedade padrão, sobre a qual o corpus metalinguístico quinhentista fornece uma informação específica ao nível da consciência, da práxis escritural e da dimensão normativa. O aumento da amplitude da variação que o texto acusa não é só inerente à diversificação dos conteúdos, à pluralidade de vozes e à policromia de cambiantes. Camões ... identifica a tendência que prevalecerá no futuro, e extrai, daquilo que intui na língua, consequências detectáveis no plano da criação estética. |
Difusão e influência De acordo com Monteiro, dos grandes poetas épicos da tradição ocidental Camões permanece o menos conhecido fora de sua terra natal e a sua obra-prima, Os Lusíadas, é o menos conhecido dos grandes poemas dessa tradição. Entretanto, desde o tempo em que viveu e ao longo dos séculos Camões foi louvado por diversos luminares não-lusófonos da cultura ocidental. Torquato Tasso dedicou-lhe um soneto, Baltasar Gracián elogiou a sua agudeza e engenho, no que foi seguido por Lope de Vega, Cervantes e Góngora. Foi uma influência sobre o trabalho de John Milton e vários outros poetas ingleses, Voltaire chamou-o "o Virgílio português", Goethe reconheceu a sua eminência, Sir Richard Burton considerava-o um mestre Schlegel dizia-o o expoente máximo da criação na poesia épica, e Humboldt o tinha como um admirável pintor da natureza A fama de Camões iniciou a expandir-se através de Espanha, onde teve vários admiradores desde o século XVI, aparecendo duas traduções d' Os Lusíadas em 1580, ano da morte do poeta, impressas a mando de Filipe II de Espanha, então rei também de Portugal. No título da edição de Luis Gómez de Tápia, Camões já é citado como "famoso", e na de Benito Caldera ele foi comparado a Virgílio, e quase digno de igualar Homero. Além disso, o rei concedeu-lhe o título honorífico de "Príncipe dos poetas de Espanha", que foi impresso numa das edições. Na leitura de Bergel, Filipe estava perfeitamente a par das vantagens de usar, para os seus próprios propósitos, uma cultura já estabelecida, em vez de suprimi-la. Sendo filho de uma princesa portuguesa, não tinha interesse em anular a identidade lusa nem as suas conquistas culturais, e foi-lhe vantajoso assimilar o poeta para dentro da órbita espanhola, tanto para assegurar a sua legitimidade como soberano das coroas unidas como para engrandecer o brilho da cultura espanhola |
Logo a sua fama alcançou a Itália; Tasso chamou-o "culto e bom" e Os Lusíadas foi traduzido duas vezes em 1658, por Oliveira e Paggi. Mais tarde, associado a Tasso, tornou-se um paradigma importante no Romantismo italiano. Em 1655 Os Lusíadas chegou à Inglaterra na tradução de Fanshawe. A esta altura em Portugal já se formara um corpo de exegetas e comentadores, dando ao estudo de Camões grande profundidade. Chegou a França no início do século XVIII, quando Castera publicou uma tradução do épico e no prefácio não poupou elogios à sua arte. Voltaire criticou certos aspetos da obra, mas também admirou as novidades que ela introduziu em relação às outras epopeias, contribuindo poderosamente para a sua difusão. Entre 1735 e 1874 surgiram nada menos do que vinte traduções francesas do livro, sem contar inúmeras segundas edições e paráfrases de alguns dos episódios mais marcantes. Em 1777 Pieterszoon traduziu Os Lusíadas para o holandês e no século XIX surgiram mais cinco outras, parciais. Na Polónia foi traduzido em 1790 por Przybylski e, desde então, tornou-se intimamente integrado na tradição literária polonesa, tanto que, pela sua erudição, no século XIX foi um elemento indispensável na educação literária local e foi intensivamente analisado pelos críticos polacos que o viam como o melhor épico da Europa moderna. Ao mesmo tempo, a pessoa de Camões, com a sua vida atribulada e seu "génio incompreendido", tornou-se um ícone exemplar para a geração romântica e nacionalista polaca que se apropriou da sua figura, como disse Kalewska, quase como se fosse um polaco disfarçado, exercendo grande impacto na formação do nacionalismo polaco e sobre sucessivas gerações de escritores do país. Em 1782 apareceu a primeira tradução alemã, ainda que parcial. A primeira versão integral veio à luz entre 1806 e 1807, trabalho de Herse, e no final da centúria Storck traduziu as suas obras completas e ofereceu um estudo monumental: Vida e Obra de Camões, traduzido para o português por Michaëlis. |
Camões foi uma das mais fortes influências sobre a formação e evolução da literatura brasileira, uma influência que começou a ser efetiva a partir do período barroco, no século XVII, como se constata pelas semelhanças entre Os Lusíadas e o primeiro épico brasileiro, a Prosopopeia, de Bento Teixeira, de 1601. As poesias de Gregório de Matos também foram muitas vezes decalcadas do modelo formal camoniano, embora o seu conteúdo e tom fossem bem outros. Mas Gregório usou paródias, colagens, citações diretas e até cópias literais de trechos de vários poemas de Camões para construir os seus. Com Gregório iniciou-se um processo de diferenciação da literatura brasileira em relação à portuguesa, mas não pôde evadir-se de, ao mesmo tempo, preservar muito da tradição camoniana. Durante o Arcadismo continuou a prática da rutura paralela à recriação e a influência d' Os Lusíadas aparece nas obras O Uraguai, de Basílio da Gama, e em Caramuru, de frei Santa Rita Durão, dos dois o mais próximo da fonte original, tanto em forma como em visão de mundo. A lírica de Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga também é grandemente devedora de Camões. Maria Martins Dias encontrou influência camoniana também sobre a literatura brasileira contemporânea, citando os casos de Carlos Drummond de Andrade e Haroldo de Campos. |
Durante o Romantismo, não só na Polónia, como foi dito, mas em vários países da Europa, Camões foi uma figura simbólica de grande destaque, popularizando-se versões da sua biografia que o retratavam como uma espécie de génio-mártir, com uma vida dificultosa e penalizado ainda mais pela ingratidão de uma pátria que não soubera reconhecer a fama que ele lhe trouxera, sublinhando-se o facto de a sua morte ocorrer no ano em que o país perdia a independência, unindo-se assim o triste destino de ambos. Na interpretação de Chaves, a recuperação romântica de Camões constituiu um mito com base tanto na sua biografia como na sua lenda, e cuja obra fundia elementos do belo imaginoso da tradição italiana com o sublime patriótico da tradição clássica, veiculando a partir do início do século XIX "uma mensagem liberal de grande dimensão humana... um recriador e um instrumento de uma importante tradição literária antiga, um herói nacional de imutável destino em que no seu mítico percurso existencial tal como na sua obra se projetaram sonhos, esperanças, sentimentos e paixões humanas". Durante longo tempo, a maior parte da sua fama repousou apenas sobre Os Lusíadas mas, nas últimas décadas, a sua obra lírica vem recuperando a alta estima que lhe foi dedicada até ao século XVII. Curiosamente, foi na Inglaterra e nos Estados Unidos que permaneceu mais viva uma tradição, que remonta ao século XVII, de equilibrar o seu prestígio entre a épica e a lírica, incluindo entre os seus apreciadores, além dos citados Milton e Burton, também William Wordsworth, Lord Byron, Edgar Allan Poe, Henry Longfellow, Herman Melville, Emily Dickinson e especialmente Elizabeth Browning, que foi uma grande divulgadora da sua vida e obra. Foi produzida ainda muita literatura crítica sobre Camões nesses países, bem como várias traduções. |
O grande interesse pela vida e obra de Camões já abriu espaço para o estabelecimento da Camonologia como uma disciplina autónoma nas universidades, oferecida desde 1924 na Faculdade de Letras de Lisboa e desde 1963 na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Pelo Protocolo Adicional ao Acordo Cultural entre o Governo da República Portuguesa e o Governo da República Federativa do Brasil, em 1986 foi instituído o Prémio Camões, o maior galardão literário dedicado à literatura em língua portuguesa, concedido àqueles autores que tenham contribuído para o enriquecimento do património literário e cultural da língua. Já receberam o prémio, entre outros, Miguel Torga, João Cabral de Melo Neto, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, José Saramago, Sophia de Mello Breyner, Lygia Fagundes Telles, António Lobo Antunes e João Ubaldo Ribeiro. Nos dias de hoje, estudado e traduzido para todas as principais línguas do ocidente e algumas orientais, é praticamente um consenso chamá-lo de um dos maiores literatos do ocidente, ombreando com Virgílio, Shakespeare, Dante, Cervantes e outros do mesmo quilate e há quem o tome como um dos maiores da história da humanidade. Reunida em Macau em 1999, a Organização Mundial de Poetas homenageou o espírito universalista de Luís de Camões, celebrando-o como um autor que ultrapassou barreiras temporais e nacionais. |
Críticas Apesar de o mérito artístico de Camões ser largamente reconhecido, a sua obra não ficou imune a críticas. O bispo de Viseu, Dom Francisco Lobo, acusou-o de jamais haver amado verdadeiramente e, por isso, ter falseado o amor através do embelezamento poético. Para o crítico, o amor "não se declara com requebros tão ponderados, e por tão afetado estilo, como ele faz tantas vezes, ou para melhor dizer, como faz em todos esses lugares em que mais pretende engrandecer-se". Hegel, embora elogiando várias qualidades d' Os Lusíadas, criticou a incongruência entre o tema nacionalista e o uso de modelos formais clássicos e italianos, além de apontar uma presença excessiva da voz pessoal do poeta, em várias passagens em que usa a primeira pessoa do singular para tecer uma variedade de comentários, interrompendo o fluxo da ação épica. Cesário Verde considerou o "desconcerto" camoniano, um modo errático de ser sujeito no mundo e de estar sujeito no mundo, carregando as penas do mundo sobre os ombros, como um desejo absurdo de sofrer. Sérgio Buarque de Holanda disse que as cores épicas com que Camões pintou os feitos lusitanos não correspondem tanto a "uma aspiração generosa e ascendente", mas espelham antes uma retrospeção melancólica da glória extinta que mais desfigurou do que fixou a verdadeira fisionomia moral dos agentes da expansão marítima. António José Saraiva, alinhado às teses do marxismo, lamentou a falta de substância dos seus personagens, que para ele são mais estereótipos do que pessoas reais, não são heróis de carne e osso, e carecem de robustez e vigor. Também criticou que a ação fosse levada adiante sempre por esses heróis, sem que o povo português tivesse qualquer participação. Como disse, "o peito ilustre lusitano não passa de uma abstração incapaz de conjuntivar carnalmente as proezas sucessivas dos guerreiros", pois falta-lhes caracterização externa e, ao autor, uma visão histórica ampla, reduzindo a História aos feitos de armas. Completou dizendo que Camões não se distanciou suficientemente do ideal cavaleiresco para poder criticá-lo, "o que o coloca na situação de aparecer um pouco como um Quixote que faz literatura como o outro investia (contra) os gigantes", atestando o seu desajuste em relação à sua época e caindo em contradições ideológicas. |
Tétis preside ao banquete das ninfas e dos portugueses na Ilha dos Amores, gravura anónima de 1880. |
Na mesma linha de ideias, Helgerson viu Os Lusíadas como uma reafirmação dos valores da aristocracia, atribuindo os méritos da nação a uma só classe social, e considerou o tratamento épico inconsistente com os objetivos gerais da exploração marítima portuguesa, que eram em grande parte puramente comerciais, gerando contradições internas no terreno ideológico e distorcendo os factos históricos. ários outros autores têm considerado Os Lusíadas como uma peça de propaganda e uma ilustração do desenvolvimento do colonialismo português, mostrando como os encontros interculturais eram resolvidos excessivas vezes de forma agressiva e predatória, e produzindo um discurso que glorificava os portugueses como divinamente escolhidos e fomentava a violência do imperialismo religioso da Contra-Reforma de que eles eram instrumento ativo, como fica patente na reiterada condenação dos mouros pela voz de Camões. Dizem esses autores que a mitologia de supremacia consagrada por Camões, ao ser usada pelo Estado português, teve consequências funestas para todas as colónias lusas, não somente naquela época, mas de longo prazo, que são visíveis ainda em tempos recentes, em particular na opressiva política oficial para as colónias africanas que vigorou durante a ditadura de Salazar no século XX. Sintetizando essas visões, Anthony Soares disse que em Os Lusíadas a violência do discurso "pavimentou o caminho para a violência física sobre a qual se criou a identidade do império colonial português", problematizando também o futuro da identidade nacional portuguesa moderna. Naturalmente, a literatura autóctone das colónias do Império Português não pôde em seu início deixar de alinhar-se a esse ideário, mas, como assinalou Eduardo Romo, a produção pós-colonial tem sido marcada pelo esforço de se diferenciar nitidamente em relação ao modelo cultural da metrópole e narrar as lutas pela independência, em busca de uma identidade própria para estas novas nações. Ainda dentro da esfera dos discursos hegemónicos, a obra de Camões foi vista por críticos feministas como um elemento de perpetuação de ideologias falocráticas, e se alegou que a figura de Adamastor, o titã que n' Os Lusíadas é a personificação do Cabo das Tormentas, está na raiz de uma mitologia étnica que subsidiou a política racista do apartheid na África do Sul. Por outro lado, Camões foi defendido desses ataques por vários escritores, que dizem que o significado do seu épico pode variar muito de acordo com a interpretação pessoal, que o autor na mesma obra expressou as suas dúvidas sobre a conquista e que Camões não pode ser culpado por ter sido erigido em símbolo da sua pátria e usado como instrumento político. |
Túmulo no Mosteiro dos Jerónimos. |
Símbolo nacional português A identificação de Camões e da sua obra como símbolos da nação portuguesa parece datar, como acredita Vanda Anastácio, do início da monarquia dual de Filipe II de Espanha, pois aparentemente o monarca entendeu que seria de interesse prestigiá-los como parte de sua política para assegurar a legitimidade de seu reinado sobre os portugueses, o que justifica a sua ordem de imprimir duas traduções em castelhano de Os Lusíadas em 1580, pelas universidades de Salamanca e Alcalá de Henares, e sem as submeter à censura eclesiástica. Mas Camões tornou-se especialmente importante em Portugal no século XIX, quando, conforme afirmaram Lourenço, Freeland, Souza e outros autores, Os Lusíadas sofreu um processo de releitura e mitificação por alguns dos expoentes do Romantismo local, como Almeida Garrett, Antero de Quental e Oliveira Martins, que o colocaram como um símbolo da história e do destino que estaria reservado ao país. Até mesmo a biografia do poeta foi readaptada e romantizada para servir aos seus interesses, introduzindo-se uma nota messiânica a seu respeito no imaginário popular da época. Os objetivos principais desse movimento eram compensar o saudosismo dos tempos de glória e a perceção então prevalente de Portugal como uma periferia pouco significativa da Europa e dar à sua história um sentido mais positivo, abrindo-lhe novas perspetivas de futuro. Essa tendência atingiu um ponto alto por ocasião das comemorações do tricentenário da morte do poeta, realizadas entre 8 e 10 de junho de 1880. Num momento de crise por que Portugal passava, quando se questionava a legitimidade da monarquia e se ouviam fortes reivindicações pela democracia, a figura do poeta tornou-se um foco para a causa política e um motivo para reafirmações do valor português contra um pano de fundo ideológico positivista, agregando diferentes segmentos da sociedade, como foi sintetizado nas notícias dos jornais: "O Centenário de Camões neste momento histórico, e nesta crise dos espíritos tem a significação de uma revivescência nacional"... "É sublime o acordo entre as conclusões científicas das mais elevadas inteligências da Europa e a intuição da alma popular que encontram em Camões o representante duma literatura inteira e a síntese da nacionalidade"... "Todas as forças vivas da nação se aliavam nesse grande preito à memória do homem cuja alma foi a síntese grandiosa da alma portuguesa". Sugestivamente, o comité organizador das festividades intitulou-se "Comité de Salvação Pública". Diversos estudos críticos vieram a luz no momento, incluindo estrangeiros, e a festa nas ruas atraiu enorme público. O tricentenário foi comemorado no Brasil com entusiasmo semelhante, com publicação de estudos e cerimónias em muitas cidades, transbordando os círculos intelectuais, e tornou-se um pretexto para o estreitamento das relações entre os dois países. Em vários outros países a data foi noticiada e comemorada. |
Durante o Estado Novo essa ideologia não foi muito modificada na essência, mas sim na forma de interpretação. O vate e a sua obra-prima tornaram-se instrumentos propagandísticos de consolidação do Estado e passou-se a divulgar então uma ideia de que Camões era não apenas um símbolo nacional, mas um símbolo cujo significado era tão particular à sensibilidade portuguesa que só poderia ser compreendido pelos próprios portugueses. A ironia é que essa abordagem gerou efeitos contrários imprevistos, e aquele mesmo Estado, especialmente após a II Guerra Mundial, queixava-se de que a comunidade internacional não entendia Portugal. Três anos depois da Revolução de abril de 1974 Camões foi associado publicamente às comunidades portuguesas de além-mar, tornando-se a data de sua morte o "Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas", no intuito de dissolver a imagem de Portugal como um país colonizador e se criar um novo senso de identidade nacional que englobasse os muitos emigrantes portugueses espalhados pelo mundo. Essa nova ideologia foi reafirmada nos anos 80 com a publicação de Camões e a Identidade Nacional, um volume elaborado pela Imprensa Nacional contendo declarações de importantes figuras públicas da nação. A sua condição de símbolo nacional permanece nos dias de hoje e outra evidência do seu poder como tal foi a transformação, em 1992, do Instituto de Língua e Cultura Portuguesa em Instituto Camões, que passou da administração do Ministério da Educação para a do Ministério dos Negócios Estrangeiros. |
Tendo influenciado a evolução da literatura portuguesa desde o século XVII, Camões continua a ser uma referência para muitos escritores contemporâneos, tanto em termos de forma e conteúdo como se tornando ele mesmo um personagem em outras produções literárias e dramatúrgicas. Vasco Graça Moura considera-o o maior vulto de toda a história portuguesa, por ter sido o fundador da língua portuguesa moderna, por ter como ninguém compreendido as grandes tendências do seu tempo, e por ter conseguido dar forma, através da palavra, a um senso de identidade nacional e erguer-se à condição de símbolo dessa identidade, transmitindo uma mensagem que se mantém viva e atual. E como afirmou Iolanda Ramos, "O nome do poeta surge como um símbolo da união do mundo lusófono. Nesta medida, ganha lugar de destaque a acção exercida pelo Instituto Camões que, em Portugal tal como no estrangeiro, mantém vivo o nome desta figura ímpar e sublinha o elo que a une a outras personalidades nossas contemporâneas. O simples vínculo do nome de Camões a autores consagrados da língua portuguesa, como Miguel Torga, Vergílio Ferreira, José Saramago, Eduardo Lourenço e Sophia de Mello Breyner Andresen incentiva, por sua vez, os mais curiosos a informarem-se sobre o poeta que dá nome ao Prémio (Prémio Camões) outorgado todos os anos desde 1989". |